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A ordem dos médicos e o fantasma da violência obstétrica

“Às 40 semanas, toque vaginal bem doloroso sem dó nem piedade, (o médico obstetra) ameaçou, quase agressivo, que se quisesse tentar parto normal que ia correr mal porque o bebé era “gigante'”. Marcou cesariana para o dia seguinte.” Catarina (nome fictício), mãe em 2014.


A 20 de outubro foi divulgado pela Ordem dos Médicos o “Parecer sobre ‘o reforço da proteção das mulheres na gravidez e parto através da criminalização da violência obstétrica’”, emitido pelo Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia, relativo ao Projeto de Lei n.º 912/XIV/2.ª, apresentado em julho do presente ano, pela Deputada não-inscrita Cristina Rodrigues.


O projeto-lei propõe a criminalização das variadas práticas de violência cometidas contra as mulheres nos processos de gravidez, parto e pós-parto, por profissionais de saúde.

O parecer agora emitido pela Ordem dos Médicos posiciona-se vincadamente contra este projeto, ora defendendo a legitimidade das práticas de violência experienciadas por centenas de mulheres todos os anos, ora negando complementarmente a sua existência.


Na prática, este posicionamento reforça a violência institucionalizada contra a vida e a dignidade das mulheres, sustentada pelo sistema de dominação patriarcal, e materializa-se num efetivo entrave à mudança legislativa pela qual as associações e as organizações da nossa classe há tanto se batiam e que via agora, pela primeira vez, uma possibilidade real de implementação no Código Penal.


A Ordem dos Médicos afirma que “o termo violência obstétrica é inapropriado em países onde se prestam cuidados de saúde materno-infantil de excelência, como é o caso de Portugal. O termo não se adequa à realidade que se vive nestes países; (...) põe em causa os profissionais de saúde que se esforçam por lhes prestar os melhores cuidados possíveis, segundo a melhor e mais atual evidência científica.”


Comecemos, então, por definir violência obstétrica. A primeira definição jurídica de violência obstétrica nasce na Venezuela, com a Ley Orgânica sobre el Derecho de las Mujeres a una Vida Libre de Violencia, e define-a como "apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais de saúde". Numa rápida análise das respostas obtidas no questionário lançado pela Associação Portuguesa pelos Direitos das Mulheres na Gravizez e Parto, são várias as mulheres que descrevem situações extremas de violência durante o parto, que claramente se enquadram nesta definição.


“Hoje sei que sofri violência obstétrica porque não fui informada de absolutamente nada e porque realizaram uma série de procedimentos desnecessários e até perigosos (...) após um exame feito pela parteira, passado alguns minutos, entraram dois médicos na sala que disseram que o meu filho tinha que nascer. Sem me explicarem nada começaram a fazer tudo muito rápido e a darem-me ordens. Um dos médicos fez-me a manobra de Kristeller (um procedimento desnecessário e perigoso) enquanto o outro fez-me a episiotomia mesmo depois de eu dizer que não queria (outro procedimento desnecessário). O meu filho nasceu com a ajuda de fórceps e ventosa. Foi um parto tão doloroso que eu não quis ver o meu filho ao nascer.”


São ainda várias as mulheres que, em 2021, no momento de expulsão do bebé, são submetidas à episiotomia - um corte realizado entre a parte de baixo da vulva e o anús - de forma a acelerar o parto, na maioria das vezes sem lhes ser pedido consentimento para tal.


A Organização Mundial de Saúde desencoraja por completo este procedimento, que, tal como reportado na literatura médica, constitui uma prática de mutilação genital feminina. Em 2018, o Relatório Primavera do Observatório Português de Sistemas de Saúde indicava que há uma taxa de 70% de episiotomias em partos realizados em Portugal - um valor chocante quando comparado com os valores registados em países como a Dinamarca (4%). Ora, se a episiotomia constitui uma prática de mutilação genital feminina e se esta tem tão alta incidência em Portugal, parece-nos evidente concluir que a violência obstétrica é, de facto, uma realidade no nosso país.

A Ordem dos Médicos, num parecer que envergonha vários dos seus profissionais - que inclusive se têm distanciado e posicionado contra este documento - escolhe mentir desavergonhadamente e menosprezar as experiências de violência extrema que têm lugar nos hospitais portugueses.


No seu parecer, a Ordem dos Médicos refere ainda que não se deu como provada qualquer situação de violência obstétrica em Portugal, desconsiderando o inquérito promovido pela APDMGP e tecendo críticas à sua relevância. A forma como o parecer despreza as vozes das mulheres sobreviventes de VO é sintomática de uma cultura patriarcal em que as experiências relatadas por mulheres são por princípio questionadas e desacreditadas.


Pouco importa que inúmeras mulheres denunciem os abusos que sofreram durante o parto e pós-parto. Pouco importa o trabalho incessante das organizações de mulheres para colmatar a ausência de quaisquer dados ou estudos sérios levados a cabo sobre as suas experiências. Para a classe médica importa apenas salvaguardar a sua posição de prestígio na sociedade, ao passo que ameaça dissimuladamente as mulheres grávidas em Portugal, insinuando que temem que a criminalização da VO afaste profissionais de saúde do SNS e leve ao encerramento de urgências de Ginecologia/Obstetrícia.


A Catarina, cujo testemunho é o mote para esta reflexão, partilhou connosco a experiência traumatizante que foi o seu primeiro parto, em 2014. Começa por nos dizer que o médico obstetra não permitia a colocação de perguntas nas consultas de acompanhamento e que, às 40 semanas de gestação, agendou cesariana após “toque vaginal sem dó nem piedade”, ameaçando que um parto normal constituiria um perigo porque o seu bebé era “gigante”. No momento do internamento, o pesadelo da Catarina estava apenas prestes a começar, “a enfermeira que vem colocar cateteres e soro traz uma aprendiz, que me esburaca os dois braços e passa a vida a ouvir insultos da 'chefe', no bloco não deixaram o meu parceiro estar comigo na aplicação da epidural.”


Durante o parto foram várias as instâncias em que a Catarina viu os seus direitos ignorados. Foi múltiplas vezes verbalmente violentada pela médica anestesista que a acompanhava, e após sete tentativas para aplicar a epidural, deitaram-na com os braços abertos e amarrados. Por esta altura, o seu parceiro já se encontrava com ela no bloco de parto, ambos sem perceberem o porquê de tamanha violência. Diz-nos que “todo o procedimento é violento. Sinto o bisturi e os cortes, não dói, mas senti tudo. Fiquei enjoada, ia vomitar, a enfermeira que estava à minha esquerda traz uma arrastadeira para o pé da minha cabeça. O meu filho efetivamente era grande, então empurram-me a barriga e sacodem-me enquanto o obstetra e a anestesista falam sobre férias entre eles. O meu parceiro só me vê a olhar para o teto e a chorar. Finalmente tiram-no e levam-no. O obstetra dá uma sapatadinha na minha barriga e diz: ‘já saiu o seu leitãozinho.’”


Longe de terminar no momento do parto, o cruel tratamento da Catarina continuou, “quando tentaram passar-me para a cama de rodas para ir para o recobro, as auxiliares levam com banho de líquido amniótico e sangue, 'xii olha para isto', riem-se entre elas. Chego finalmente ao recobro e finalmente pego no meu filho. Não deixei mais que o levassem para lado nenhum. Mas bem tentaram. Forçaram o meu levante e quase desmaiei. Por eu estar a chorar queriam sedar-me e levar o bebé para o berçário. Quando comecei a sentir a subida do leite desvalorizaram e fiquei com o peito super dorido. Sempre que vinham ao quarto fazer avaliação espremiam os mamilos sem cuidado para se certificarem que saía colostro.”


A experiência da Catarina não choca as mães portuguesas, porque também elas passaram por pesadelos semelhantes. Seja pela realização de episiotomia não consentida, pela aplicação da manobra de Kristeller - intervenção no período expulsivo do parto que envolve a aplicação de pressão manual na parte superior do útero em direção ao canal do parto, na qual médicos e/ou enfermeiros se colocam em cima da parturiente para aplicar pressão -, pela proibição de acompanhantes durante o trabalho de parto e as reduzidas horas de visita no pós-parto, são demasiadas as mulheres que relatam experiências de violência obstétrica. Para todas elas e para todas nós, não há nada de verdadeiro sobre o parecer da Ordem dos Médicos: é uma mentira cruel que nos ofende a todas.


A Liga Feminista do Porto entende a violência obstétrica como produto de um sistema de saúde que discrimina sistematicamente mulheres e meninas. Reafirmamos a necessidade de recentrar as pautas maternas no feminismo contemporâneo, tomando posição ao lado destas mães e repudiando por completo o parecer vergonhoso e falacioso do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos.


Também em resposta a este parecer, centenas de mães, doulas e profissionais de todo o país, organizaram-se de forma espontânea num movimento que procura recolher testemunhos de violência obstétrica praticada nos hospitais portugueses, a ser posteriormente entregue na sede da Ordem dos Médicos. Para o efeito, foram convocadas concentrações no Porto, em Lisboa e em Coimbra, no próximo dia 6 de novembro, às 15h. Exigimos que as suas vozes sejam ouvidas e que as suas reivindicações encontrem eco nas organizações de mulheres. Repudiamos a sistémica invisibilização das pautas maternas nos movimentos feministas, sobretudo desde a instauração da terceira onda feminista, de cariz liberal, identitário e individualista. Reconhecemos a apropriação da capacidade reprodutiva das mulheres e meninas como alicerce histórico que permitiu a divisão sexual do trabalho e a opressão institucionalizada de gerações de mulheres, pelo que exigimos mais: nenhum movimento de libertação será verdadeiramente consequente se for incapaz de pautar pela segurança e liberdade de todas as mães.


Continuaremos em luta, lado a lado com os movimentos espontâneos de mulheres organizadas em volta das nossas pautas em comum, em defesa dos direitos das mulheres durante a gravidez, o parto e o pós-parto. Pela criminalização da violência obstétrica, já!










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