O acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez em Portugal é, hoje, para muitas mulheres, uma experiência de profunda violência. O movimento de mulheres que se organizou nos meses que se sucederam ao 25 de abril de 1974 levantou como uma das suas principais bandeiras o acesso ao aborto e a socialização do trabalho doméstico, compreendendo - em linha com a análise teórica da segunda onda feminista que marcava o seu tempo - que o alicerce sobre o qual se sustentava a opressão da mulher era a prisão ao lar, nas suas diversas facetas. Os fatores que impediram uma concretização na lei destas reivindicações são vários e distintos, porém importa sublinhar os diversos governos de direita católica conservadora que se sucederam no final da década de 70 e no início da década de 80, em particular o executivo da Aliança Democrática (PPD/PSD-CDS/PP-PPM).
Apenas em 1984 se aprova a exclusão da ilicitude nos casos de perigo de vida física e psíquica da mulher, violação e malformação do feto, com um governo do Partido Socialista e um parlamento com maioria de deputados de esquerda, dez anos depois da Revolução de Abril e das suas promessas de libertação. Em 1999, 15 anos após a primeira lei de despenalização do aborto, apenas 1% a 2% dos abortos se realizavam ao abrigo da legislação. Em 2005, tinham sido realizados cerca de 17 mil abortos clandestinos em Portugal. Só entre 2001 e 2007, morreram 14 mulheres em abortos clandestinos, representando uma clara disjunção entre a formulação e a implementação da lei.
Ademais, as mulheres eram duplamente vitimizadas, como é o caso das 17 mulheres que foram sujeitas a julgamento na Maia, oriundas de degradados bairros do Porto e de diversas localidades nortenhas. Estes julgamentos demonstraram de forma evidente
que Portugal levava mulheres a tribunal por terem abortado: e condenava-as por isso. Porém, foi o mediatismo em volta das suas histórias que viria a tecer a força dos movimentos feministas que lhes seguiriam os passos.
Aquando da vitória do “Sim”, levado a referendo pela segunda vez, é despenalizada a Interrupção Voluntária da Gravidez, estabelecendo que esta não seria punível desde que fosse realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gestação. Isto acontece apenas em 2007, agora trinta e três anos depois de Abril. Colocar uma questão como o acesso ao aborto a referendo é uma manifestação do entendimento do corpo da mulher como domínio público - a ser legislado pelo público, como se de política de regionalização se tratasse. Ora, as 10 semanas portuguesas mantêm-se até hoje como um dos mais curtos e restritivos períodos de acesso ao aborto livre e gratuito num país onde a IVG é despenalizada. É um período vergonhosamente restritivo, profundamente conservador e que representa uma limitação real ao acesso ao aborto para as mulheres em Portugal.
Cerca de 500 mulheres viajam até Espanha, todos os anos, para aceder a um aborto – isto é particularmente relevante quando temos em consideração que a diferença entre a legislação portuguesa e a espanhola é de apenas 4 semanas. Aliás, a escolha das 10 semanas como teto legal para o acesso ao aborto por opção da mulher gera uma profunda curiosidade. Afinal, a diferença biológica entre um feto com 10 semanas e um feto com 12 semanas é praticamente irrelevante, e diversos outros países haviam, já à data do referendo, legislado nesta matéria em volta das 12 semanas. Assim, resta questionar esta escolha e o que a justifica.
Para Santo Agostinho, o feto ganharia alma 40 ou 80 dias depois da sua conceção (dependendo, claro, se se trata de um feto masculino ou feminino, pois as mulheres demorariam mais tempo a receber a bênção divina), rondando assim as 10 semanas de gestação. Para a religião, e para o catolicismo em particular, o conceito da infusão da alma está intimamente relacionado com os debates sobre a moralidade do aborto, bem como a moralidade da contraceção. Analisemos, agora, o profundo impacto político das campanhas anti-escolha levadas a cabo pela instituição da Igreja Católica portuguesa: para diversos autores, foram as suas ações que justificaram a derrota do primeiro referendo. Seria, portanto, de admirar, que tivessem sido os escritos de um homem que viveu há 1600 anos que definiram a política abortiva em Portugal no ano de 2007? E, por consequência, que definiram as experiências de controlo reprodutivo (ou falta dele) de, pelo menos, uma geração inteira de mulheres?
Vejamos agora os desafios que enfrentamos para aceder a um aborto em Portugal: a idade gestacional até à qual é permitida a IVG (dez semanas), o período de reflexão obrigatório, as restrições ao aborto medicamentoso, a obrigatoriedade de realização do procedimento em hospitais, a necessidade de validação do procedimento por dois profissionais, a autorização de partes terceiras (familiares, companheiros ou outros profissionais), o acompanhamento psicossocial, as restrições geográficas e a prática da objeção de consciência.
A maioria das mulheres descobre que está grávida entre as 6 e as 8 semanas de gestação, e a grande maioria das interrupções ocorrem antes das 14 semanas. Um teto tão baixo quanto as 10 semanas implica um entrave direto no acesso ao procedimento por uma restrição temporal propositadamente imposta. Mesmo em países como o Canadá, onde a lei permite o acesso à IVG até às 24 semanas, a maioria das intervenções ocorre até às 12 semanas de gestação. Assim, prolongar o prazo não aumenta sequer o número de abortos tardios, na verdade, o que está em causa é uma limitação moralista que tem como único efeito prático o controlo reprodutivo institucionalizado de mulheres e meninas em solo português.
A par disto, a lei em vigor obriga ainda a um período de reflexão de, pelo menos, três dias. Não só este período representa uma infantilização e uma subordinação da autonomia das mulheres pelo Estado, como se materializa ainda num período de espera acrescido num contexto legal que é já altamente limitado e que funciona como uma poderosa arma burocrática que permite a criação de atrasos artificiais. O período de semanas que frequentemente separa a primeira da segunda consulta permite ultrapassar o limite legal das 10 semanas e impedir o acesso à IVG. Estas barreiras influenciam comportamentos e representações, fazendo com que profissionais de saúde atuem, muitas vezes, com uma predisposição moralizadora sobre as mulheres. A objeção de consciência é frequentemente pautada por profissionais em relação ao aborto por opção da mulher, estando disponíveis para o realizar noutras situações, num claro desdém pela sua autonomia.
Em Portugal, existem hospitais em que a generalidade dos profissionais de saúde habilitados para a realização de IVG declararam objeção de consciência, nomeadamente nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Açores, Alentejo e nos distritos de Castelo Branco e Guarda por constrangimentos no funcionamento das consultas. Nestes casos, o procedimento passa pelo encaminhamento para serviços privados, o que, na grande maioria das situações, acontece para o centro da cidade de Lisboa, independentemente da zona de residência da mulher, numa manifesta iniquidade na garantia plena do direito à saúde em situações de aborto. Entre 2008 e 2013, 46 das 50 instituições de saúde públicas (hospitais, na sua maioria) declaravam realizar a IVG, embora outros dados indicassem que, nessas instituições, cerca de 80% dos profissionais de saúde das especialidades envolvidas no procedimento não realizam abortos. O Serviço Nacional de Saúde não garante, nos seus serviços e de forma generalizada, o acesso ao aborto, na medida em que um terço dos casos se realiza no setor privado, de acordo com dados da DGS de 2018.
A tudo isto veio juntar-se a crise pandémica. Agora que estão liberados os primeiros dados, sabemos que a pandemia da covid-19 já causou pelo menos 1,4 milhões de gestações indesejadas em todo o mundo. Milhões de mulheres e meninas viram o seu acesso a métodos contracetivos vedado, através do encerramento de centenas de clínicas, um pouco por todo o mundo. Em Portugal, a crise pandémica atrasou os processos de acesso ao aborto que, como já vimos, nunca foram fáceis ou igualitariamente distribuídos.
Assim, se é certo que a legislação portuguesa consagra o direito ao aborto para todas as mulheres até (apenas) as 10 semanas de gestação, para um vasto número de mulheres neste país, tampouco existem as 10 semanas.
Face a tudo isto, é incompreensível que nada tenha sido feito pelas organizações da esquerda nos últimos anos. É nos dito que é uma questão fechada: que está tudo feito. Nós sabemos que a realidade é profundamente diferente. Conhecemos os obstáculos da burocracia hospitalar, a violência dos profissionais, os entraves geográficos - para as mulheres que vivem ou que procuram abortar em Portugal, a narrativa vigente de uma política de aborto de sucesso não passa de uma ilusão cruel.
Assim, exigimos o direito ao aborto até às 24 semanas, livre, seguro e gratuito, por opção da mulher e sem entraves. Exigimos serviços de planificação familiar públicos e gratuitos, assim como contracetivos e artigos de higiene feminina gratuitos nas farmácias, centros de saúde, escolas, universidades e demais edifícios públicos. Exigimos o fim do período de reflexão, a criação de estabelecimentos de saúde específicos, inseridos no SNS, para realização de IVG, a implementação da IVG medicamentosa em todos os Centros de Saúde, a obrigatoriedade de serviços mínimos em todos os hospitais do país, capazes de assegurar o procedimento, independentemente da objeção de consciência. Exigimos um SNS capaz de assegurar tudo isto, possível apenas através de um investimento massivo.
Definimos o aborto como o término de uma gestação, voluntário ou não, antes da viabilidade fetal, que é vulgarmente considerada no espectro entre as 20 e as 24 semanas. Ou seja, uma mulher que opte por abortar depois das 24 semanas – algo que, importa sublinhar, muito raramente sucede – seria, muito provavelmente, impossibilitada de o fazer, visto não mais se tratar de uma instância de aborto. Seria, então, sujeita a um parto induzido, sendo que o bebé, depois do devido acompanhamento neonatal, poderia seguir para adoção ou qualquer outra opção estipulada para casos dessa ordem. O que está em causa, portanto, é a defesa total do aborto, até quando ele cientificamente existe.
Defendemos as 24 semanas porque defendemos o total controlo reprodutivo das mulheres sobre o seu próprio corpo. Não aceitaremos que a nossa liberdade esteja limitada de acordo com uma moralidade artificial imposta sobre o feto. Os restantes limites, quer sejam eles de 14, 16 ou 18 semanas, são legalmente justificados para e a partir do feto – é sobre ele que se cria e elabora a política e nunca sobre a mulher, o ser humano de plena formação, sobre a qual a política incide.
Ou seja, quando se defende um limite legal de 12 semanas, baseado na formação do feto no primeiro trimestre, o que se está efetivamente a fazer é limitar o controlo da mulher sobre o seu próprio corpo em oposição ao crescimento arbitrário de um número de células mais ou menos desenvolvidas alojadas no seu útero. Isto é verdade, de uma forma ou de outra, para todos os limites legais, com a exceção das 24 semanas.
Diminuir o número de abortos, não porque os consideramos pecaminosos ou de forma alguma moralmente repreensivos, mas porque representam frequentemente experiências traumáticas de dor e violência pelas quais nenhuma mulher escolhe passar de ânimo leve, faz-se através de um compromisso com o investimento em saúde reprodutiva, em serviços de planeamento familiar, em educação pública, gratuita e de qualidade, e em luta contra a violência sexual tão vulgarmente cometida contra as mulheres e meninas, aqui e em todo o mundo.
Por tudo isto, a reivindicação da extensão do prazo legal de acesso à IVG para as 24 semanas é a materialização do nosso compromisso com o total controlo reprodutivo de todas as mulheres. É o único limite que baseia a sua justificação na mulher, o sujeito político cuja capacidade reprodutiva foi brutalmente apropriada, controlada, legislada, cujos dividendos criaram nações e riquezas para todos menos para elas. Sabemos que a extensão do prazo legal não aumenta o número real de abortos que ocorrem, tampouco o número de abortos tardios. Implica, no entanto, um compromisso edificado com a saúde, a segurança e a dignidade de todas nós.
À luta, companheiras.
Porto, 20 de setembro de 2021,
Liga Feminista do Porto
Fonte: Miguel Areosa Feio, «Lei do aborto em Portugal: barreiras atuais e desafios futuros», Sociologia, Problemas e Práticas, 97 | 2021, 129-158.
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